sábado, julho 24, 2004

ALICE NO PAÍS DOS MATRAQUILHOS

Mãe for a (em que avenida?)
olhos que a perseguem, pagam, comem
pai dentro, lambendo a ferida
com que o desemprego marca um homem
e o irmão na caserna
puxando às armas brilhos
e Alice no café
habitante do país dos matraquilhos

Na classe dos repetentes
hoje vai haver mais uma falta
Alice cerra os dentes
vendo a bola que no ar ressalta
quer lá saber do exame
quer lá saber da escola
aguenta no arame
matraquilho nunca cai ao ir à bola

Alice no país dos matraquilhos é mais
do que no bairro em que vive tem-te-não-cais

Há também Leonor
libertada da prisão há meses
dizem que é por amor
que olha tanto por Alice, às vezes
pousa-lhe a mão na cara
protege-a de sarilhos
Alice nem repara
Viajou para o país dos matraquilhos

E o irmão na caserna
cambaleia entre a cerveja e a passa
tem a sargento à perna
o tal que compara a guerra à caça
faz tempo que descobre
que é um matraquilho mais
soldadinho de cobre
matraquilho no país dos generais

Alice no país dos matraquilhos é mais
do que no bairro em que vive tem-te-não-cais

Quando se cai na lama
ninguém pára p’ra nos levantar
Alice! o pai reclama
a tu mãe não veio p’ra jantar
e os insultos, noite fora
desfia-os em chorrilhos
Alice nunca chora
adormece no país dos matraquilhos

E a mãe no “bar do amor”
passa as horas na conversa mole
espera o seu protector
e que o seu corpo a ela enfim se cole
não é que não recorde
os que deixou em casa
mais eis que chega o Ford
e dentro vem o seu pavão de anel na asa

Alice no país dos matraquilhos é mais
do que no bairro em que vive tem-te-não-cais

Entra então no café
um rapaz de capacete em punho
fica-se ali de pé
escreve num papel um gatafunho
e a Alice lê, surpresa
frases que são rastilhos
“Como vai Sua Alteza
a rainha do país dos matraquilhos?”

“E tu, ainda és rei?
Será que voltaste em meu auxilio?”
“A bem dizer, já não sei
há tantos anos que ando no exilio…”
“Vamos a um desafio?”
“Atira tu primeiro”
“A vida está por um fio
para quem é deste bairro prisioneiro”

O café que ali houve
é uma loja com ares de modernice
e nunca ninguém mais soube
(a não ser a Leonor) da Alice
“Aqui vai, Leonor
a foto dos meus dois filhos
se reparares melhor
têm pinta assim, sei lá, de matraquilhos”

Alice no país dos matraquilhos é mais
do que no bairro em que vive tem-te-não-cais

Sérgio Godinho
(1989)