terça-feira, agosto 31, 2004

a questão essencial

O estranho caso das leis iguais com práticas opostas
FERNANDA CÂNCIO

No turbilhão do debate sobre a vinda a Portugal do barco da Women on Waves, corre-se o risco de perder de vista a questão essencial. É esse o medo do médico e deputado do PSD Salvador Massano Cardoso. Este considera que, muito mais importante que discutir o problema do aborto a 12 milhas da costa é ter presente que milhares de portuguesas passam a outra fronteira do país para ir abortar a clínicas espanholas , que funcionam sob uma legislação idêntica à portuguesa. E pergunta: «Por que razão é que uma lei, sendo igual em Espanha e Portugal, tem consequências práticas tão distintas? Esse é o ponto nobre desta matéria, o ponto fulcral da discussão sobre o aborto».Para este social democrata, só há duas hipóteses. «Ou são os espanhóis que estão a abusar, ou é a nossa lei que não está a ser utilizada em toda a sua latitude. Não têm sido invocados os direitos que ela permite.» Porque, frisa, trata-se de saber se «a legislação em vigor em Portugal permite cobrir outras situações diferentes das que estão a ser cobertas». E não tem dúvidas sobre a resposta. «Pode! E uma das razões por que isso não sucede é a forma esporádica como isto é discutido.» O deputado lamenta que «sempre que se fala deste assunto se entre em ebulição, e em ebulição as pessoas não conseguem ser sensatas». Sensatez seria, para este clínico de Coimbra, fazer o que fazem os espanhóis, ou seja, admitir o aborto por motivos relacionados com o perigo para a saúde psíquica da mulher, o que naquele país correspondeu, na prática, a permitir o aborto «a pedido». «Há uma diferente interpretação: também podemos fazer recurso a esses aspectos, a nossa lei também o permite. A uma mulher que esteja grávida contrariada, isso pode causar-lhe danos psíquicos irreversíveis! Porque a saúde não é só a saúde física, há saúde psíquica e social!»Os motivos de uma tão radical diferença entre as interpretações portuguesa e espanhola da mesma lei prender-se-ão, para o médico, com «falta de coragem». Dos «sucessivos governos e principais partidos», incluindo o seu, dos médicos e da sociedade em geral. «Há uma certa passividade das pessoas: dá trabalho lutar...» Exemplifica com o facto de nunca se ter assistido, no País, a qualquer batalha legal sobre o assunto. «Que aconteceria se abrisse uma clínica de interrupção da gravidez, a funcionar como as espanholas, em Portugal? Numa primeira fase, uma espécie de terramoto. Teria de se recorrer aos tribunais, claro. Mas se isso sucedesse em meia dúzia de casos, acabar-se-ia por chegar à conclusão de que se estava dentro da legalidade». Certo é que ainda ninguém a tal se atreveu. Massano Cardoso imputa o facto «ao nível cultural dos portugueses». Também a «cultura médica» lhe merece reparo, a começar pela existência de um código deontológico que, ao «proibir o aborto», entra em contradição com a lei da República. O bastonário dos médicos, Germano de Sousa, admite que «o entendimento restritivo da lei é em grande parte imputável aos clínicos». E não nega ser a tal disposição do código - que já anunciou, no início do ano, dever ser alterada - a consubstanciação desse entendimento: «Nunca houve dentro da classe uma grande pressão para a modificação.» Alega até que «grande parte é objectora de consciência» mesmo se, no seu caso pessoal, frisa ser «completamente a favor das excepções previstas na lei». Mas a interpretação espanhola, mais lata na alegação de «ameaça à saúde psíquica» parece-lhe complicada: «é muito difícil demonstrar problemas de saúde psíquica.» Para Germano de Sousa, trata-se de perceber que «os médicos portugueses foram educados para respeitar a vida». Os espanhóis não? «Claro que sim... Mas eles são mais permissivos.»

in Diário de Notícias