quinta-feira, abril 29, 2004

vida paralela

fez-me olhar noutra direcção. saí do brasil com a mala repleta de cd's. ouvi tudo, comprei o que pude, mas a grande descoberta foi legião urbana. rock brasileiro, cantado por um voz profunda, colocada mas doce. o renato russo deixa-me em puro extâse, esse homem feio, de brasília, da minha cidade de adopção, do sítio onde me senti mais livre e mais só. o período mais feliz da minha vida, embora coxo pela falta dos meus irmãos. em brasília sentia-me outra. pela primeira senti-me uma mulher, a sério, com M. bonita, leve, despreocupada, inteligente, competente, admirada, amada. incondicionalmente amada. a roçar a idolatria. em brasília apaixonei-me de forma descontrolada, acesa, adolescente. quis casar. regressei com promessas de união eterna. na despedida pensei que ia morrer, morrer de amor. assustei todos os meus amigos: uns olhavam-me com com censura, perplexidade, gozo, é tonta, coitada, achas mesmo que ela vai casar com o tipo? outros tentavam chamar-me à razão com falinhas mansas e discursos sérios, mas vais-te mesmo casar? mas tens a certeza? conhecem-se há tão pouco tempo... pensa bem nisso!

não casei. gastei uma pipa de massa em telefonemas e dois meses depois já andava a suspirar por outro. desapaixonei-me com um sonho e um telefonema. alguma coisa caiu, assim, repentinamente, sem eu dar por nada. o grande amor passou. na verdade... nunca chegou.

mas aquele rapaz triste, de olhos doces, barba rala, que tinha estudado história, órfão de pais e de amor, vem-me sempre à cabeça quando ouço legião urbana. e penso em brasília. e acho que fui estúpida. e que nunca devia ter voltado. e que aqui me vou perdendo aos poucos, perdendo de uma vida possível, mais apetecível mas mais amarga.

por isso, quando ponho os legião urbana a tocar, entro num estado de euforia interior que ninguém percebe, que não deixo transparecer, numa dor que me dá um prazer mágico, quase embriaguez. o peito parece insuflar-se como um balão e tudo se torna mais intenso: o cheiro, as cores, as pessoas, a minha vida paralela, que parece ter continuado no planalto central, no distrito federal, no plano piloto. e que me assombra... às vezes.


Índios
Renato Russo

Quem me dera, ao menos uma vez
Ter de volta todo ouro que entreguei
A quem conseguiu me convencer
Que era prova de amizade
Se alguém levasse embora até o que eu não tinha

Quem me dera, ao menos uma vez
Esquecer que acreditei que era por brincadeira
Que se cortava sempre um pano-de-chão
De linho nobre e pura seda

Quem me dera, ao menos uma vez
Explicar o que ninguém consegue entender
Que o que aconteceu ainda está por vir
E o futuro não é mais como era antigamente

Quem me dera, ao menos uma vez
Provar que quem tem mais do que precisa ter
Quase sempre se convence que não tem o bastante
E fala demais por não ter nada a dizer

Quem me dera, ao menos uma vez
Que o mais simples fosse visto como o mais importante
Mas nos deram espelhos
E vimos um mundo doente

Quem me dera, ao menos uma vez
Entender como um só Deus ao mesmo tempo é três
E esse mesmo Deus foi morto por vocês
É só maldade então, deixar um Deus tão triste

Eu quis o perigo e até sangrei sozinho
Entenda - assim pude trazer você de volta pra mim
Quando descobri que é sempre só você
Que me entende do início ao fim
E é só você que tem a cura para o meu vício
De insistir nessa saudade que eu sinto
De tudo que eu ainda não vi

Quem me dera, ao menos uma vez
Acreditar por um instante em tudo que existe
E acreditar que o mundo é perfeito
E que todas as pessoas são felizes

Quem me dera, ao menos uma vez
Fazer com que o mundo saiba que seu nome
Está em tudo e mesmo assim
Ninguém lhe diz ao menos obrigado

Quem me dera, ao menos uma vez
Como a mais bela tribo, dos mais belos índios
Não ser atacado por ser inocente

Eu quis o perigo e até sangrei sozinho
Entenda - assim pude trazer você de volta pra mim
Quando descobri que é sempre só você
Que me entende do início ao fim
E é só você que tem a cura para o meu vício
De insistir nessa saudade que eu sinto
De tudo que eu ainda não vi

Nos deram espelhos e vimos um mundo doente
Tentei chorar e não consegui

"Dois"
(1986)