domingo, outubro 17, 2004

como de um post sobre a possibilidade de integrar ernesto e alberto na lista de possíveis-nomes-para-os-meus-filhos passo para o pesadelo de darfur

sentir-me-ia estúpida, ridícula se, depois de ter lido este artigo, viesse para aqui por-me a divagar sobre nomes, apelidos e alcunhas.

é longo, este artigo. não sei sequer se será imparcial e objectivo, mas acredito que quem o escreveu experienciou um pouco deste pesadelo-realidade que o mundo insiste em querer ignorar.

Darfur Epitáfio para Dois Milhões de Vivos

Paulo Moura

Um homem alto, velho e esguio representa um estranho número para um grupo muito interessado de espectadores reunidos à sua volta. Gesticula, salta e grita furiosamente, enquanto vai colocando, em várias posições diferentes, quatro tijolos no chão. Isto é Nyala, capital do Darfur do Sul. As ruas, uma confusão. Em terra batida, cheias de buracos. Lixo. Poeira. As mulheres com os tops de uma peça só, vermelhos, verdes, amarelos ou às flores, numa babilónia de códigos tribais, de recados tácitos no seu silêncio, que todos compreendem, ou ninguém compreende. Hadari, Tarjan, Rizaigat, Masalit, Zagawa, Fur, tribos árabes e africanas, todos juntos nas ruas, na confusão, os aliados, os rivais, o irmãos, os contendores, as vítimas, os assassinos. Isto é Nyala. Todos no bazar a céu aberto.

Os homens de túnica branca, a jalabia tradicional sudanesa, na versão com botões ou lisa, o mahdi. Com as calças interiores, o seroal, e o barretinho branco bordado, o taghia, ou turbante, o imma, no caso de terem mais poder, ou mesmo a assaia, a bengala, se tiverem uma posição proeminente na hierarquia da tribo. Nesse caso poderão ainda usar sapatos de leopardo, ou de cobra, a assala, uma serpente gigantesca por temor da qual, diz a sabedoria popular, qualquer um que tenha de dormir na floresta o deva fazer de braços e pernas bem abertos, para não ser facilmente engolido durante a noite...

A alguns metros, as pessoas confundem-se com a poeira. A poeira mistura-se com os cheiros, os aromas quentes e inesperados das mezinhas e tisanas que invadem os mercados da rua. Das frutas, os fritos, o peixe seco, a carne podre.

Da ferrugem seca, da borracha queimada. Ao lado da "bomba de gasolina" feita de bidões, a feira de peças velhas de automóvel, amontoadas no chão, a fumegar, indistintas na sua sinistra amálgama, como os despojos de uma catástrofe. O ferro-velho mistura-se com a comida, as bagas, as folhas, os óleos, o carvão, a roupa, os freios dos camelos, as albardas dos burros, o lixo. Isto é Nyala. Montanhas de lixo, nuvens de lixo, tempestades de lixo. O lixo mistura-se com as pessoas. As pessoas confundem-se com o lixo. Quase não há casas, tudo acontece ao ar livre, e quase não há carros, o tráfego é constituído por pequenos riquexós motorizados, cavalos e burros, a maioria puxando uma carroça, algumas com sistema de som, canções árabes aos berros pela rua abaixo.

As "lojas" são improvisadas, não mais do que uma banca, uns panos, uns caixotes. Montam-se e desmontam-se, mudam de sítio. Dá a impressão de que toda a cidade se poderia desarmar em meia-hora, deixando apenas o lixo, e que nesse total desaparecimento não estaria implícita uma grande mudança na paisagem.

Não obstante, a cidade está viva. Estranhamente viva. Multidões acotovelam-se nos bazares labirínticos, de tendas esfarrapadas, junto às bancas onde se vendem punhais e catanas, pelos mercados de livros espalhados no chão, a perder de vista, como um lençol branco e ondulante, as páginas a esvoaçarem, finas, escritas em árabe, quase transparentes, num rumorejar de papel de arroz, de penas. Ou à volta do homem que inventa mil e uma maneiras de dispor quatro tijolos.

Tem um enorme saco de pano branco cheio de areia, que atira de um lado para o outro, e assenta entre os tijolos. Parece estar zangado, impaciente. Está a vender alguma coisa? A fazer propaganda? A evangelizar?

"Está a ensinar", diz-nos em ingês um jovem de bigode e camisa branca impecável. "A ensinar a sepultar os mortos, segundo o Islão. As pessoas não sabem ou, com a pressa, colocam os corpos com a orientação errada".

É uma lição de ciência funerária. "Ele está a dizer que não é por se sepultarem os mortos à pressa ou em grandes quantidades que se pode fazê-lo de maneira imprópria", traduz o jovem, sem compreender por que razão alguém sepultaria um familiar à pressa.

"Chamo-me Mortada", apresenta-se ele. "Cheguei ontem de Cartum, onde vivo. Disseram-me que no Darfur poderia encontrar trabalho. Sabe de alguém que tenha um emprego para mim?"

Mortada destoa completamente no cenário circundante. Não só por usar calças e camisa e por estar limpo. Também e acima de tudo pela sua expressão cortês, de executivo diligente e atarefado. "Estou a juntar dinheiro para emigrar para o Canadá". Abre a "pasta" preta que traz consigo, nada menos do que a capa do menu de um restaurante de hotel, para mostrar os recibos de centenas de dólares que já pagou, durante quatro anos, a uma duvidosa empresa sudano-canadense que lhe prometeu um visto. "Preciso de trabalhar, para pagar todas as despesas. Espero, no prazo de um ano, estar no Canadá".

Empregamo-lo como tradutor. Após uma breve conversa sobre as entrevistas que faremos e os locais que visitaremos, Mortada tem lágrimas nos olhos. Nunca ouvira falar da crise humanitária do Darfur.

Ávido de desempenhar competentemente a sua tarefa, quer aprender a soletrar correctamente algum vocabulário de que irá necessitar. Abre a sua capa profissional onde se lê, a dourado, "Hotel Palace". No topo da única folha em branco que tem no interior escreve em inglês, em maiúsculas: "GENOCÍDIO, VIOLAÇÂO, LIMPEZA ÉTNICA"

Partimos de Nyala, rumo aos Campos de Deslocados. Segundo a ONU, são muitas centenas, espalhados por todo o território do Darfur. Ao todo, quase dois milhões de pessoas fugiram das suas aldeias e estão em perigo de vida, por falta de comida e medicamentos. Fugiram, segundo as autoridades, por causa da guerra lançada pelos rebeldes, do Movimento de Libertação do Sudão (SLM) e do Movimento para a Justiça e Equidade (JEM), que combatem as forças governamentais, com o objectivo de conquistarem o poder. Foi esta a tese que Mortada ouviu na televisão, em Cartum.

Nos arredores de Nyala, há aldeias habitadas, com mulheres e crianças à volta das pequenas casas redondas, com telhados de palha e paredes feitas com uma amálgama de lama, fezes de burro e palha. À medida que o carro avança aos solavancos pelos trilhos, entramos numa mata selvagem, de vegetação rasteira mas densa, a chamada savana pobre, que caracteriza as regiões a Sul do deserto do Sara.

Num lago fétido, formado pelas chuvas repentinas dos últimos dias, meninos tomam banho nus. Mulheres avançam pelos caminhos, com pilhas de lenha à cabeça.

Mas ao afastarmo-nos escassos quilómetros da cidade, a paisagem muda. Todas as aldeias estão vazias. Algumas destruídas. Pássaros de enormes bicos curvos ou plumas de cores bizarras ocuparam as carcaças das cubatas, lançando gritos estridentes na savana devolvida ao estado primitivo. A atmosfera tem o assombro de uma fábula. Sentimo-nos intrusos. Tudo palpita e cintila, como se na selecção natural todas as espécies vivas - excepto uma - tivessem uma história de sucesso para contar. Excepto a nossa.

Os seres humanos só voltam a habitar a paisagem nas imediações de Oteich, um dos Campos de Deslocados, onde se refugiam cerca de 18 mil pessoas. Antes de entrarmos, cruzamo-nos com algumas mulheres a carregar lenha, com burros e vacas muito magros, bandos de crianças a gritar "ok, ok, ok", correndo atrás do carro onde viram um estrangeiro. Mas a maioria não sai do perímetro do campo. Fora dali ninguém lhes garante a segurança, explicam. E ali também não. Mas tinham de refugiar-se em algum lugar. As cerca de dez mil cabanas, a que chamam "burmas" aglomeram-se a menos de um palmo umas das outras, construídas com ramos e plásticos, ao ritmo do próprio medo.

"Eu vim a pé, da aldeia de Bolbula, com os meus quatro filhos. O mais velho foi morto. Também mataram os meus pais e os meus quatro irmãos. O meu marido desapareceu, não sei se está vivo ou morto", conta Mariam Isak Ahmed, num relato angustiado idêntico aos que viríamos a ouvir centenas de vezes. "De madrugada, um avião bombardeou a aldeia. Destruiu a maior parte das casas, matou muita gente. Logo a seguir, atacaram os janjawid, uns 30 ou 40, montados em camelos e cavalos, armados com espadas e metralhadoras". A história do costume, repetida até à vertigem, até à náusea, até à banalidade. A história do Darfur. "Começaram a matar todos os homens. Vi violarem algumas mulheres. Lançaram fogo à aldeia. Quem pôde, fugiu. Dispersámo-nos. Nunca mais vi o meu marido".

Outra mulher, Mariam Jacob, 19 anos, tem ao colo um bebé de 18 meses, Abdelmajid Josef. "Eles chegaram de manhã. Mataram os meus pais e os meus irmãos. Incendiaram a aldeia. Roubaram tudo. Eu fugi, mas tenho muito medo. Eles estão aqui", diz ela, referindo-se aos polícias que guardam o campo. Dir-se-ia que contraíu uma paranóia de perseguição, que está louca. O minúsculo e ressequido Abdelmajid chora ininterruptamente. "Não tenho leite, a mama secou. Onde vou encontrar comida para ele?" Mariam diz isto com a voz a tremer. "Onde vou encontrar comida?"

Um homem de 36 anos, Amin Josef Abderazik, conta como dos seus sete filhos só um sobreviveu. "Já era costume os árabes virem assaltar a nossa aldeia, Kidi Nir. Mas a Polícia protegia-nos como podia. Desde há seis meses, as coisas pioraram. A Polícia saiu da região, deixando-nos à mercê dos janjawid". Abderazik era um agricultor abastado. Tinha cavalos e um tractor, cultivava goma arábica, sorgo, cebolas e tomates. Perdeu tudo. Os janjawid (palavra que, em árabe, significa "demónios a cavalo" ou "cavaleiros do Inferno") atacaram a aldeia há três meses. "Foi óbviamente tudo concertado. Primeiro surgiram aviões e helicópteros, das Forças Armadas sudanesas. Largaram três bombas, que destruíram cinco casas e a escola. Logo a seguir vieram os janjawid, em cavalos e camelos, armados com metralhadoras kalashnikov e GM3. Alguns vestiam camuflados, outros uniformes do Exército sudanês. Cercaram a aldeia, e incendiaram o que restava dela. Começaram a matar indiscriminadamente. Assassinaram 250 pessoas. Roubaram tudo, gado e comida. Não podíamos defender-nos, só os árabes têm armas. Fugimos. Mais de cem pessoas. Viemos todos juntos, até aqui".

Abderazik admite que simpatiza com o SLM, um dos grupos rebeldes. "Eles estão armados, podem proteger-nos. Defendem os africanos". Mas garante que não havia nenhum guerrilheiro na aldeia.

Uma mulher, Assida, veio há quatro meses, de Doggi, nas montanhas do leste. Foi a primeira a chegar a Oteich. Os janjawid mataram-lhe o marido e o filho, ela fugiu, com mais 14 raparigas. "Não havia nada aqui. Mas depois chegou o WFP (Programa Alimentar Mundial). Durante alguns meses, distribuíram comida. Agora há gente a mais, a maioria não tem senhas, que já não são distribuídas. A maioria passa fome. Hoje, por exemplo, ainda ninguém comeu nada".

Ao princípio, os refugiados falavam a medo, constrangidos pela presença dos seguranças do Campo, receosos de que os seus relatos lhes custassem punições, represálias. Mas agora, encorajados pela coragem dos primeiros, todos querem falar. Juntam-se à nossa volta em chusma, gritam, discutem, quase lutam para que lhes seja dada a vez, indiferentes ao facto de, como muitos descreveram, alguns dos janjawid que os atacaram estarem agora ali a guardar o Campo, entretanto convertidos em polícias.

Todos querem narrar o seu caso pessoal, sem se aperceberem de que é igual aos outros. Todos querem falar da fome e das doenças.

Uma mulher, Hawha Ahmed, de 25 anos, exibe os olhos amarelos dos três filhos. Outra traz o marido que está a morrer de diarreia. Outra ainda mostra a bebé que traz ao colo, Rogaia Abaker, de 18 meses, a cabeça coberta com um pano. "Foi às dez da noite que os janjawid chegaram a Bakhit. Começaram a matar as pessoas, o meu marido desapareceu, deve ter morrido. Depois incendiaram as casas. A Rogaia ficou ferida no fogo". E neste momento a mulher faz algo de terrível. Lentamente, sem por um único momento olhar para a filha, descobre-lhe a cabeça. É impossível conter um grito de horror. Rogaia tem o cérebro exposto. O crânio aberto, os miolos a palpitarem no calor insuportável do Darfur, róseos e húmidos, debruados de veias, lavrados de membranas. Uma menina viva com o cérebro nu.

"Foi ao médico?", perguntamos, mas já tudo está distante, já o Campo de Oteich se transformou no cenário de um pesadelo difuso, demente, incompreensível. "Porque não vai ao médico?" Um cenário desumano. Cada vez mais grotesco e cada vez mais natural aos nossos olhos. O absurdo é embriagante. Já nada surpreende. Isto é o Darfur. Como sob o efeito de um narcótico, ouvimos mais histórias de horror. Vemos mais doentes, mais feridos. Uma mulher conta-nos como a prima foi violada, na aldeia de Aluf. Insiste em levar-nos até ela, para ouvirmos o relato em primeira mão. Entramos numa burma com Amuna Abelrahman, uma rapariga alta e atraente, de 20 anos. Estão presentes apenas a prima e o líder tribal, mas lá fora aglomera-se uma multidão, sedenta dos pormenores da violação. Todos sabem o que aconteceu a Amuna e a outras 25 mulheres da aldeia. Todos conhecem de cor as práticas dos janjawid, mas nem por isso deixam de votar as violadas ao opróbio e ao ostracismo.

"Eu e a minha prima andávamos a apanhar lenha, perto da aldeia, à tarde", conta Amuna, sem levantar os olhos, desenhando quadrados no chão, com um dedo. Mortada vai traduzindo, num sussurro. "Eram cinco horas. Eles chegaram, cinco homens a cavalo, com kalashnikovs. Apearam-se, correram atrás de nós. Fugimos, mas eu caí, e apanharam-me. Dois deles ficaram a agarrar-me os pés e as mãos, os outros três fizeram sexo comigo". Amuna cala-se. Gotículas de suor formaram-se por todo o seu rosto escuro e suave. A prima continua, a chorar: "Os janjawid fugiram, ela ficou no chão, inconsciente. Fui lá buscá-la, com alguns vizinhos. Trouxemo-la de burro para a aldeia. Ficou três meses no hospital. Por sorte não engravidou". O pai de Amuna morreu, de desgosto e vergonha e um primo mais velho, que já tinha três mulheres, casou com ela, para não ficar sozinha.

Ouvimos mais histórias, vemos mais crianças doentes, ou feridas, muitas sem terem recebido qualquer tratamento, apesar de haver uma clínica no Campo. A mãe de Rogaia diz que foi ao médico, mas é evidente que está a mentir. O cérebro da menina não apresenta nenhuma espécie de curativo.

"A maior parte dos doentes tem malária, febres, vómitos ou diarreias. Muitos deles ferimentos, que se tornaram graves por terem ficado meses sem tratamento", explica-nos Badaoui Jaffar, um dos dois médicos, voluntário sudanês. A sala de espera da tenda que constitui a clínica está repleta de doentes, alguns deitados no chão, de olhos fechados. Uma menina de 9 anos está a ser tratada. Tem uma ferida enorme e horrível abrangendo o pé e parte da perna. "Foi uma bala, dos janjawid, há duas semanas", explica a mãe. Só hoje foi tratada. O médico não consegue afastar os milhares de moscas da ferida aberta. Mariam diz que lhe dói muito, porque lho perguntamos, mas não chora.

"Quase todas estas doenças seriam facilmente curáveis", diz o médico. "Mas faltam-nos os meios básicos. Há cada vez mais refugiados que chegam, muitos não vêm ao médico, não se sabe porquê. Certas pessoas andam meses com feridas profundas. Quando as vemos, é demasiado tarde. Não temos forma de fazer um levantamento dos problemas de saúde. Só aqui vem quem quer".

Visitamos outros Campos, Kalma, o maior de todos, com mais de 85 mil refugiados, Asseref, com mais de 70 mil. Aqui, pelo menos cinco mil pessoas chegaram demasiado tarde para receberem as senhas de comida do WFP, e estão a morrer à fome. Outros tantos de doenças. A atmosfera está carregada de desespero, de terror. Ao contrário de Kalma, neste Campo não há uma administração oficial, nem polícia. Os janjawid andam nas imediações e atacam quem se aventure a ir apanhar lenha, ou, durante a noite, no próprio campo, que é liderado por um chefe tribal. Morrem umas dez pessoas por dia, diz ele, que mantém uma lista actualizada de toda a população. "Mas ontem chegaram dez, e anteontem 20..."

Amar Gedit chegou com os filhos durante a noite. Os janjawid mataram-lhe o marido em Dresa, uma aldeia a 20 quilómetros daqui, há dois dias. Outra mulher diz ser a única sobrevivente de uma família de dez pessoas, outra queixa-se de que não come há uma semana, outra de que tem o marido e os filhos doentes. Há cada vez mais gente à nossa volta, num coro de histórias macabras e queixumes. As pessoas falam todas ao mesmo tempo, gritam, apertam o círculo. "Eles vieram à meia-noite, a cavalo..." "Antes só roubavam, agora matam..." "Os aviões lançaram bombas, depois os janjawid cercaram-nos..." "mataram sete pessoas da minha família..." "Roubaram tudo, levaram as vacas, queimaram as colheitas..." "Mataram o meu irmão..." "Mataram o meu filho..."

A temperatura é de quase 50 graus. O cheiro insuportável. Não se consegue respirar. Mortada berra, empurra, mas não consegue impor a ordem. Logramos furar por entre a turba alucinada e infecta, fugir, mas perseguem-nos, aglomeram-se de novo à nossa volta. Agora sim, começam a organizar-se: atiram para a frente os que têm histórias mais horrendas, e os mais doentes. Uma mulher de 40 anos, Fatma Adam, conta: "O meu filho correu atrás das vacas, que estavam a ser roubadas, e um janjawid apanhou-o. Enterrou-lhe uma lança na boca, uma lança comprida, como as que eles usam, uma arba. Enterrou-a com toda a força na boca do meu filho, até lhe sair pelas costas".

Asha Isa, 24 anos, mostra-nos o filho doente. Tem dores de estômago e diarreia e a cara empapada em lágrimas e moscas, que a mãe já se cansou de sacudir. Não foi ao médico porque há demasiadas pessoas à espera, diz ela. Abdelcrim Suleiman, 40 anos, exibe os dez filhos, todos doentes, com diarreia e febre. O marido tem malária. Zarha Moussa Ali, 36 anos empurra para a frente o filho de quatro anos, que tem diarreia e os olhos amarelos e acaba por cair aos seus pés, sem forças. Rasha Adam Ateib, 25 anos, está grávida de nove meses. Os janjawid cercaram a sua aldeia, Cornei, depois do ataque aéreo, de nove bombas. "Incendiaram as casas e ficaram à espera que saíssemos, para depois dispararem sobre as pessoas em fuga. Quase toda a gente morreu, incluindo o meu marido. Eu vi, um a um. Fugi sozinha".

Rasha não tem senhas de comida, nem conhece ninguém. Não sabe o que fará quando nascer Mohamed, ou Mariam, se for menina.

Mortada decide alertar as médicas do Campo, quando falarmos com elas. Para que procurem Rasha e assistam o parto. Mas esquece-se.

Chegamos a Nyala com muitos nomes a ecoar na cabeça - Mariam, Asha, Fatma, Kaltum, Amuna, Rasha, Rogaia - mas uma só história, mil vezes repetida.

Para desespero de Mortada, a realidade é inequívoca: as milícias armadas das tribos árabes, os janjawid, estão a actuar em coordenação com as forças governamentais sudanesas com o objectivo de exterminar parte da população das tribos africanas do Darfur. Todos os refugiados dos Campos pertencem a tribos "africanas" - Fur (Darfur significa "terra dos Fur"), Zagawa, Masalit. E todos os janjawid, segundo os testemunhos, pertencem a tribos "árabes" - Hadari, Rizagat, Tarjan. A guerrilha rebelde nasceu no seio das populações "africanas", numa contestação contra o Governo central de Cartum, dominado pelos "árabes", e o abandono a que foi votada a região e as populações "africanas". Estas, por sua vez, apoiam, de forma evidente, a rebelião, pelo que o Governo optou por atacar o mal pela raiz: exterminar os "africanos", ou pelo menos confiná-los a "campos de concentração" onde as suas actividades possam ser vigiadas. Como não conseguia fazê-lo sozinho, uma vez que a maioria dos soldados é de origem "africana", pediu ajuda aos chefes tribais "árabes", usando a seu favor a rivalidade ancestral entre os dois grupos étnicos. Rivalidade baseada mais nas quesílias endémicas entre pastores nómadas e agricultores sedentários do que na etnia propriamente dita, já que árabes e africanos há muito que se miscigenaram no Darfur, têm a mesma religião - o islão - e falam a mesma língua, o árabe.

Os "gangs" de árabes nómadas, montados em cavalos e camelos, armados de espadas e lanças, que atacam as aldeias para roubar gado e colheitas são uma tradição imemorial no país. A novidade é que agora têm metralhadoras e são apoiados por bombardeamentos aéreos.

"Não posso acreditar que o nosso Governo está a matar as pessoas. Em Cartum, ninguém sabe isto". Nem mesmo a Mortada, cuja vida mudaria para sempre com esta descoberta, resta qualquer dúvida.

O que está por explicar é por que razão as pessoas não vão ao médico. Simone Niederastroth, uma das duas médicas alemãs de Asseref, tinha-nos contado que tratam umas 200 pessoas por dia, principalmente de malária, infecções gástricas e de pele, otites e feridas infectadas. Mas que poderiam tratar mais, assim elas aparecessem na clínica. E que a situação é tanto mais grave quanto é quase certo, se os cuidados médicos não se intensificarem nos próximos meses, o surgimento de epidemias que matarão milhares de pessoas.

A explicação surgiria inesperadamente num dos mercados de Nyala, através de uma personagem burlesca e intrigante que se apresentou como Achir Ahmed Al-Baferi, iemenita, feiticeiro. Barba grisalha comprida em bico, óculos de espelho, dentes de ouro, chapéu mexicano sobre um barrete de renda, túnica branca, lenço às riscas e um Corão, Al-Baferi é um homem que não passa despercebido. Compreende-se que parte da sua autoridade lhe advém do "look" radical, que cultiva com grande competência. "Curo todo o tipo de doenças psicológicas, a maior parte das malárias e mais de 30 espécies de cancro, com o recurso exclusivo a plantas e rezas", declara. E oferece-se para uma visita guiada ao mercado.

Nada é o que parecia. Com as explicações do feiticeiro, enquanto caminhamos entre as bancas e os produtos expostos no chão, a cidade transforma-se num mundo mágico. "Isto é gorinjan, cujo chá cura os males intestinais", ensina, apontando para um cesto de raízes secas. "Esta pasta verde é chamarr, que dá sabor à comida e faz baixar a febre. Esta casca de árvore chama-se girfa e é óptima para as infecções cutâneas. Isto parece favas pretas mas é haradip, o principal remédio contra a malária. Carcadê faz baixar a tensão arterial, godem é bom para quem não tem sangue suficiente, tubeldi põe-se em água até fazer papa e cura a prisão de ventre".

Al-Baferi pára junto a uma banca que vende "produtos para as senhoras". Dicka, um pó avermelhado para tornar a pele mais macia. Khombra, um óleo aromático para fazer uma mulher irresistível. Só para casadas. Chaf... é melhor ser a vendedora a explicar as propriedades dos pauzinhos semelhantes a canela, sugere o iemenita.

"Bem, há aquelas moças que já foram um pouco... usadas. Ou que tiveram um filho...", começa a vendedora gorda, com ar malandro. "Faz-se uma fogueirinha com chaf, até deitar muito fumo. Então a mulher que tem o problema despe-se da cintura para baixo e senta-se assim..." Exemplifica, pondo-se de cócoras sobre os pauzinhos. "Este fumo especial trabalha-lhe aqui as partes, deixando tudo apertadinho de novo..."

Al-Baferi vai apoiando com a cabeça, com toda a autoridade que manifestamente lhe reconhecem. É claro que no Darfur ninguém tem o hábito de consultar médicos. É natural que olhem com desconfiança os voluntários estrangeiros que trabalham nos Campos de Deslocados.

Al-Baferi, que vive nas montanhas e só desceu ao povoado para comprar algumas raizes, diz que está a elaborar, para entregar à ONU, um completo relatório. Um trabalho de pesquisa com soluções para a crise humanitária - à base de chás que curam todas as doenças, especialmente a loucura - e para a crise política.

Neste capítulo, só há um remédio: usar os líderes tribais. "Só a eles as pessoas ouvem e obedecem. Não aos políticos ou aos estrangeiros. O Governo deve reunir os chefes das tribos, que representam o povo".

Em Cartum, Musa Hilal, considerado o líder de todos os janjawid do Darfur, indicara-nos os nomes de dois chefes tribais árabes na região de Nyala - Mohd Jakob Elomba, chefe dos targem, e Abdalah Abunova, dirigente máximo dos mahria. Tentar encontrá-los em Nyala não é tarefa fácil. À simples menção dos seus nomes, a maior parte das pessoas cala-se, ou foge. "Eles são os chefes dos janjawid", disse-nos um vendedor. "São homens muito perigosos. Não contem a ninguém que vos disse isto".

Depois de muita investigação, com a ajuda do chefe da polícia e do juiz, ambos "árabes", encontrámos a casa de uma das quatro mulheres de Elomba, Hawah Shahta. Mas o único vestígio do grande chefe é o seu cavalo, o Arkalzal (Terramoto). Elomba partiu de jipe para a aldeia de Bulbul, onde tem outra esposa, para resolver um conflito tribal precisamente com o seu amigo Abunoba.

O autocarro para Bulbul é um indiscritível monte de sucata ferrugenta com os vidros partidos, embora todo forrado, por dentro, a veludo vermelho e berloques. Os passageiros têm de sair e empurrar, para que o motor pegue, mas depois avança aos pinotes pelos trilhos como se fosse um todo-o-terreno. O sol está a por-se na savana pobre. Surgem as primeiras aldeias, todas arrasadas. A seguir, bandos de nómadas, em camelos. Numa paragem entra um homem que declara não ter dinheiro para o bilhete. "Não tens mesmo? Então podes vir", diz o condutor. Mortada aproveita para explicar as tradições sudanesas de entreajuda. Nafir, é quando alguém precisa, por exemplo, de construir uma casa, e todos ajudam. Faza, é quando alguém morre e todos correm para apoiar, dar consolo", vai dizendo, enquanto passamos por casas incendiadas e crateras de bombas.

Chegamos a Bulbul. A aldeia está pejada de homens de camuflado e metralhadoras, sinal de que os líderes janjawid estão por perto. Dois dos guardas aproximam-se e Mortada estende-lhes o papel que retira da capa do menu do Hotel Palace e onde escrevera os nomes dos dois líderes. O homem da kalashnikov começa a ler com todo o vagar e... Maldição! No topo da folha pode ler-se, em maiúsculas "GENOCÍDIO, VIOLAÇÂO, LIMPEZA ÉTNICA". É tarde de mais para lhe tirar o papel. Ele não o larga mais. Faz-nos sinal para o seguirmos.

Junto a um grande toldo feito de ramos, um abrigo de nómadas, não longe de várias casas com paredes de bosta e erva, estão três jipes, dezenas de guardas armados e os dois chefes, com os seus séquitos. Já foram avisados da nossa chegada e preparam-se para a entrevista.

"É uma grande honra que um irmão jornalista português tenha vindo de tão longe para descobrir a verdade sobre o Darfur", diz Abunoba, um homem com 1,90m, de jalabia branca imaculada e sapatos de leopardo. Uma bengala, um relógio de ouro e uma pasta de executivo completam a indumentária que, juntamente com o colega Elomba, os distinguem dos outros.

Sentamo-nos num tapete e Abunoba começa a dissertar sobre as origens da crise na região. "A ONU e os americanos falam de genocício, mas isso não é verdade. Há um conflito normal entre dois tipos de sociedade: a dos pastores e a dos agricultores. Dantes, estes conflitos eram resolvidos pelos líderes tribais, com os seus tribunais e a sua lei, que se chama Orf. O que se passa agora é que houve um aproveitamento político destes conflitos. Os rebeldes do SLA começaram a atacar os nómadas, a roubar, e a convencer os africanos de que é preciso lutar contra os árabes e o Governo".

Cai a noite, chega a hora da oração. Alguém grita "Alá uh Akbar!" Abunoba pede desculpa por interromper a entrevista e todos se prostram voltados para Meca, as jalabias brancas como que acesas pelo luar intenso.

Jantamos, grandes pedaços de carneiro com molho de sorgo, e continuamos a conversa pela noite dentro. Abunova e Elomba mostram as espadas (jafir) e os punhais que usam, quando viajam a cavalo. As lanças enormes (harba) iguais à que matou o filho de Fatma. Contam como as suas tribos vieram da Arábia, criticam as acções dos americanos, a guerra do Iraque, as mentiras da ONU e a campanhas de propaganda dos rebeldes, explicam como funciona a lei Orf, os julgamentos, as multas, os acordos entre chefes, como os líderes tradicionais são eleitos pela população, como se articula o seu poder com o da administração oficial e também como isso se alterou lentamente ao longo da História e, subitamente, nos últimos meses.

Com efeito, os últimos Governos do país foram retirando prerrogativas ao líderes tribais. Impotente para resolver a actual crise, no entanto, Cartum pediu ajuda aos chefes tradicionais. Ajuda militar, em troca de mais poder político, administrativo e judicial. Um chefe tribal podia por exemplo, explica Elomba, condenar criminosos em penas até 4 anos, sem recurso a um tribunal estatal. A partir deste ano, esse limite passou a ser de 7 anos. "O Governo deu-nos esse direito, para enfrentar os novos eventos".

Depois convidam-nos a dormir ali, para que no dia seguinte possamos assistir a julgamentos e visitar as aldeias vizinhas, constatando como árabes e africanos vivem em harmonia. Aceitamos. Dormimos ao relento, com os assassinos, a ouvir os burros, as vacas, os cães, os pássaros, os mosquitos, e a sonhar com o filho de Fatma, empalado numa lança, e o de Rasha, que ia nascer para a morte, com Amuna, violada pelos janjawid, e o cérebro exposto da menina queimada, o cérebro viscoso, repelente, a funcionar, a pensar, e cérebro maravilhoso de Rogaia.

De manhã cedo começam os julgamentos. Um homem queixa-se de que um camelo lhe estragou as culturas. Depois de uma longa conversa entre os chefes das respectivas tribos, o culpado é condenado a uma pesada multa. Uma rapariga apedrejou um camelo; um homem armou uma zaragata. Resolvidos todos os crimes, saímos em missão. Quatro jipes em caravana, com os chefes e os guardas armados. Objectivo: aldeia de Brambram, onde há um mercado. Até lá, passamos por muitas manadas de vacas e varas de camelos, a pastar nas terras que estiveram cultivadas. Passamos por várias aldeias, todas vazias, algumas destruídas. Que aconteceu aqui? "Ouviram dizer que havia guerra, fugiram para os Campos de Deslocados", é a resposta. E ninguém mais toca no assunto. Todas são aldeias Fur, a maior tribo africana.

Mortada tem um olhar desesperado. Transformou-se noutro homem, em poucos dias. Já esqueceu o Canadá, quer ficar, para ajudar o seu povo, promete. De vez em quando, num murmúrio surdo, fala de Rasha, a grávida de Asseref. "Esqueci-me de dizer às médicas. Provavelmente o bebé morreu, e ela também, por minha causa".

Chegamos a Brambram. Os chefes Fur vêm receber-nos, cheios de deferência. Um enorme bode é morto ali mesmo, à punhalada, para oferecer de repasto aos visitantes. Elomba e Abunova, as jalabias imaculadas a contrastar grotescamente com os trapos imundos dos chefes africanos, sentam-se numa manta. Perguntam se há algum problema para resolverem. A resposta é não. Está tudo bem. Depois esperam que façamos a visita à aldeia.

Mal os vêem pelas costas, os chefes Fur desatam a contar tudo. São atacados por janjawid quase todos os dias, que os exortam a partir, com ameaças. Muitos homens foram mortos, mulheres violadas. A maioria da população já fugiu. No mercado não se vende nada, porque ninguém tem coragem de cultivar. As terras foram ocupadas pelos árabes.

Mostram-nos a escola fazia, sem professor há vários anos. A guarita onde havia polícias, também vazia. "Agora são eles que mandam", dizem, apontando na direcção de Elomba e Abunoba. "Estamos à mercê deles. Mandam os janjawid se desobedecermos. Têm um campo de treino aqui perto, em Taisha".

Terminada a visita, os líderes árabes devoram o bode, perante os olhares famintos de dezenas de crianças. No fim, quando só restam ossos, são autorizadas a servir-se. Isto é o Darfur. A harmonia entre árabes e africanos.

Mortada tem um olhar ausente, dir-se-ia estar louco. "Provavelmente o bebé morreu"... balbucia.

in Pública
17 de Outubro de 2004