o sr. calçado partilha comigo a administração do condomínio desde maio. é o meu co-administrador. hoje, pela segunda vez, levantei-lhe a voz. estou angustiada desde então.
o sr. calçado é um velhote de mais de 70 anos, que teve uma trombose há uns tempos atrás. se já era meio tonto, pior ficou. os seus olhinhos pequeninos brilham na sua cara paralisada e arrasta as palavras que lentamente se descolam de uma boca meio-curva, meio-recta. de tudo faz uma grande confusão e raramente me consegue explicar as coisas. repete a mesma história três e quatro vezes em menos de 20 minutos. hoje acordei com a campainha da porta. levantei-me sabendo que do outro lado estaria o sr. calçado, ansioso por me entregar alguma papelada e falar sobre os problemas do prédio. espreitei pelo buraco da fechado. atravês do seu ângulo abaulado confirmei o meu temor. dei meia volta e, silenciosamente, verifiquei se o esquentador estava aceso. deixei-o do outro lado da porta e entrei no banho. enquanto isso, o telefone tocava e o telemóvel anunciava "1 chamada não atendida". já esquecida, resolvi apanhar a roupa que estava estendida, receosa que a chuva a apanhasse desprevenida. tremi quando ouvi uma voz arrastada saudar-me "bom dia d. susana!". falei-lhe pela janela. perguntei-lhe o que queria, recorri à minha expressão mais aflita e expliquei-lhe que não tinha tempo para falar com ele, que tinha de correr para apanhar o metro. enquanto mecanicamente apertava as molas e restituia a liberdade às calças, cuecas e lençois, ouvi-o "estou aqui há já uma hora." voltei a não lhe abrir a porta, a deixá-lo de fora do meu 6ºd, prometendo-lhe que falaria com ele mais tarde, depois do trabalho.
mais tarde, depois do trabalho, toquei repetidamente à campainha da porta. como sempre, recebeu-me com um sorriso naquela sua boca parada. passado uns minutos, em total desespero mas sem razão, levantava-lhe a voz. fiquei agustiada até agora. amanhã vou voltar a tocar à sua porta e dizer "desculpe, sr. calçado".