Acabou. Acabou-se. Expulsaram o polvo da minha vida, as suas ventosas já não me prendem a nada, deixaram-me no vazio. É estranha esta sensação de libertação. É amarga porque queria ter sido eu a expulsar o polvo da minha vida: queria desenlear-me sozinha dos seus braços compridos, que me emaranhavam numa teia de estupidez, frustração e incompetência, arrancar-me do seu novelo burocrático e patético, libertar-me dele e da sua lógica ilógica.
A frustração é-me aplacada pela sensação de alívio, de leveza das horas, agora mais soltas, agora mais minhas. Há um outro sentimento que se impõe a curto prazo, que olho de relance e a medo, um sentimento de incerteza no futuro, de vazio das horas, das tais que hoje passam a ser só minhas e de mais ninguém. Mas não desanimo, nunca desanimarei porque, a toda a hora, cantarei comigo esta canção:
A principio é simples, anda-se sozinho
passa-se nas ruas bem devagarinho
está-se bem no silêncio e no borborinho
bebe-se as certezas num copo de vinho
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
Pouco a pouco o passo faz-se vagabundo
dá-se a volta ao medo, dá-se a volta ao mundo
diz-se do passado, que está moribundo
bebe-se o alento num copo sem fundo
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
E é então que amigos nos oferecem leito
entra-se cansado e sai-se refeito
luta-se por tudo o que se leva a peito
bebe-se, come-se e alguém nos diz: bom proveito
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
Depois vêm cansaços e o corpo fraqueja
olha-se para dentro e já pouco sobeja
pede-se o descanso, por curto que seja
apagam-se dúvidas num mar de cerveja
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
Enfim duma escolha faz-se um desafio
enfrenta-se a vida de fio a pavio
navega-se sem mar, sem vela ou navio
bebe-se a coragem até dum copo vazio
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
E entretanto o tempo fez cinza da brasa
e outra maré cheia virá da maré vazia
nasce um novo dia e no braço outra asa
brinda-se aos amores com o vinho da casa
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida.
Sérgio Godinho
Pano Cru
(1978)