ETELVINA
Etelvina com seis meses já se tinha de pé
foi deixada num cinema depois da matinée
com um recado na lapela que dizia assim
quem tomar conta de mim
quem tomar conta de mim
saiba que fui vacinada
saiba que sou malcriada
Etelvina com dezasseis anos já conhecia
todos os reformatórios da terra onde vivia
entregaram-na a uma velha que ralhava assim
ai menina sem juízo
nem mereces um sorriso
vais acabar num bueiro
sem futuro nem dinheiro
Eu durmo sozinha à noite
vou dormir à beira rio à noite à noite
acocorada com o frio à noite à noite
Etelvina era da rua como outros são do campo
sua cama era um caixote sem paredes nem tampo
sua janela uma ponte que dizia assim
dentro das minhas cidades
já não sei quem é ladrão
se um que anda fora das grades
se outro que está na prisão
Etelvina só gostava era de andar pela cidade
a semear desacatos e a colher tempestade
a meter com os ricaços a dizer assim
você que passa de carro
ferre aqui a ver se eu deixo
venha cá que eu já o agarro
dou-lhe um pontapé no queixo
Eu durmo sozinha à noite ...
Etelvina já cansada de viver sem ninguém
a não ser de vez em quando amores de vai e vem
pôs um anúncio no jornal que dizia assim
mulher desembaraçada
quer viver com alma irmã
de quem não seja criada
de quem não seja mamã
Etelvina já sabia que não ia encontrar
nem um príncipe encantado nem um lobo do mar
só alguém com quem pudesse dizer assim
o amor já não é cego
abre os olhinhos à gente
faz lutar com mais apego
a quem quer vida diferente
O seu homem encontrou-o à noite
a dormir à beira rio à noite à noite
acocorado com o frio à noite à noite
Sérgio Godinho - À Queima Roupa
1974